No final da década de 1980, fui professor visitante no então Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Brasília. Das salas de aula, divisava-se parte do campus onde havia a agência bancária na qual funcionários e professores recebiam seus salários, e estudantes, suas bolsas. Era um tempo ainda sem caixas eletrônicos e movimentação pela internet. Todos tinham de frequentar a agência e seus atendimentos, longas e demoradas filas se formavam.
Costumava mostrar aos alunos os fura-filas, os que chegavam solicitando para outras pessoas já na cansativa fileira humana fazerem suas operações. E alertava: esses aí, no dia em que puderem administrar uma grande licitação, pedirão comissão. É o que sempre pensei: quem gosta de levar vantagem indevida em pequenas ações é capaz de causar enormes prejuízos em possibilidades maiores.
Mais tarde, exerci funções públicas executivas. Suava frio e queria sumir quando alguém chegava ao gabinete e dizia ¿os políticos são desonestos, mas o senhor é um homem correto¿. Claro que considerava injusta a generalização e imerecida a suposta homenagem. Mas o que mais me preocupava nessas ocasiões é que, geralmente, vinha a seguir do interlocutor o pedido para lhe conseguir algo indevido, desautorizado pelas normas, ilegal ou imoral.
Ou seja, quem apregoava a desonestidade dos outros não considerava que fosse da mesma ordem um ¿jeitinho¿ irregular para si. E vinham pedidos para aprovar um filho em concurso público, dar um drible em alguma norma legal para favorecê-lo, coisas assim, impossíveis de serem atendidas ou que me negava a fazer.
Trago tais memórias de um passado meio distante para refletir sobre a profunda crise de valores que vive o País e como um dia sairemos dela. O grave problema de hoje é que as práticas irregulares e ilícitas generalizaram-se de forma avassaladora. Está agora exposta uma chaga na estrutura de poder. Muitos países enfrentaram recentemente desvios de conduta de altos mandatários, todavia, o problema do Brasil é que estes não são exceção, passaram a ser regra. Exceção, hoje, é a conduta correta nos altos escalões do poder nacional a qual, certamente, existe.
Penso que a cultura da vantagem indevida e do ¿jeitinho¿ irregular tão presente em nosso tecido social gangrenou relações sociais, empresariais e institucionais. A solução virá quando conseguirmos reverter essa cultura e substitui-la por responsabilidade na base, cumprimento das normas, respeito ao justo convívio social.
Não adianta pensar que vai acontecer um milagre na parte de cima da estrutura de poder. Cabe-nos, sim, irresignação com o que assistimos lá. Resolver em definitivo dependerá de mudar a cultura na base da sociedade, no dia a dia. Somente quando formos um povo de respeito às normas, educação no convívio e cuidado com nossos valores poderemos consolidar melhores representações e estruturas de poder.